A vida antes e além do trabalho: quem são os funcionários terceirizados da USP?
Às 8h30, Alessandro Sousa Almeida levanta da cama em que deitou pouco depois da meia-noite. Prepara a marmita, dá um beijo na mulher e no filho e pega um ônibus do Grajaú, bairro onde mora, até o trem. Depois de 45 minutos, sai na estação Cidade Universitária e monta na bicicleta que estava guardada no local desde a noite anterior. Então pedala até a USP. São cinco quilômetros diários – alguns meses atrás, ele percorria todo esse trajeto pedalando mais de 30 quilômetros, mas agora usa os trilhos e os pedais.
O destino de Alessandro na USP é a Escola de Comunicações e Artes, onde é controlador de acesso nos departamentos de Jornalismo e Editoração, Música e Artes Plásticas. De vez em quando trabalha no Instituto de Psicologia. Ele é o responsável por supervisionar as entradas e saídas de alunos e professores de cada setor há um ano e quatro meses.
Por substituir colegas na hora do almoço – que costuma durar uma hora e meia – , a função de Alessandro é conhecida como “almocista”. Das onze da manhã às onze da noite, ele substitui seus colegas que almoçam e jantam. O seu almoço acaba ficando por último: Alessandro só consegue comer a marmita – terceirizados não podem utilizar o bandejão – às 15h30 ou no final da tarde, dependendo do dia.
Nascido em Salvador, se mudou para a capital paulista há cinco anos, querendo ficar mais próximo dos pais, que residem em São Paulo há mais de uma década. A mudança envolveu algumas adaptações, sobretudo esta: “Ainda tenho que me acostumar com o frio”, comenta.
Na Bahia, Alessandro fez testes em alguns times de futebol. Depois, resolveu seguir os passos do pai e trabalhar como armador na construção civil. Fazia armações de ferro e erguia pilares. Demitido, recorreu a um amigo que o indicou para seu atual emprego. “Com mulher e filho e eu parado em casa, o trabalho que apareceu, eu peguei”, conta. Mesmo sem seguir carreira no esporte, ele faz questão de incluir a paixão pelo futebol em sua rotina. Quem entra no departamento de Jornalismo e Editoração quase certamente o encontrará se atualizando sobre o esporte, vendo vídeos de lances e dribles espetaculares.
Desde o começo, a empresa que presta serviços à USP e contratou Alessandro deixou claro que, quanto ao transporte, só seria coberto o valor de uma condução diária para ida e outra para a volta. Nos primeiros dias, ele pagava a maior parte dos gastos com dois trens e um trecho de ônibus para chegar à ECA. Então a bicicleta surgiu como alternativa: “Quando eu queria resolver algo na cidade, sempre andei de bicicleta. Então, eu uni o útil ao agradável”.
Durante as doze horas que trabalha como controlador de acesso, ele vê muitas pessoas. “Os alunos são gente boa, mas com os funcionários, depende. A gente passa com um ‘boa noite’, ‘boa tarde’, ‘bom dia’ e vai vivendo”. Apesar dos horários pouco convencionais, ele gosta de trabalhar na USP. “É sossegado”, diz. “Todo mundo sempre me respeitou.” Mas nem tudo são flores.
Sempre os outros, mas entre nós
Alessandro Sousa Almeida é um dos cerca de 6 mil terceirizados da USP, segundo o Sintusp. Voltado para o trabalho dos empregados pela Universidade, o Sindicato dos Trabalhadores da Universidade de São Paulo não representa os terceirizados.
As relações das organizações sindicais com os funcionários contratados indiretamente são complexas. Não existe um sindicato único, mas vários: para os profissionais de limpeza, para os especialistas em vigilância e assim por diante. O Sintusp, contudo, os oferece amparo político e jurídico, ou seja, auxilia em manifestações frente à Universidade ou ajuda abrir processos contra empresas e a própria instituição de ensino.
De um total de 14 mil empregados pela USP, o número significativo de 6 mil terceirizados – quase metade do total – vem crescendo em ritmo acelerado, protagonizando um regime de contratação polêmico.
Raquel: expectativas fora da universidade
Em seis anos de USP, Raquel Lima passou pela São Francisco, Escola Politécnica e está no Centro de Difusão Internacional (CDI). Grávida de oito meses de Maria Helena, ela trabalha como controladora de acesso das sete da manhã às sete da noite, de segunda à sexta-feira.
Antes da USP, Raquel era balconista de uma padaria em bairro nobre próximo ao Jaguaré. Ela veio parar na Universidade por indicação da irmã, que trabalhava como terceirizada na Faculdade de Educação. Apesar do turno na USP ser puxado – doze horas batidas, cinco dias seguidos – o trabalho na padaria permitia somente uma folga por semana. Raquel mal tinha tempo para o filho mais velho, hoje com 9 anos. Na panificadora “havia muita coisa gostosa para comer e eu engordei uns 10 quilos”, lembra.
Raquel gosta de trabalhar na USP e até ganhou um chá de bebê dos funcionários da Universidade. “Às vezes, o que incomoda aqui é a postura de alguns alunos e o circular, porque mesmo eu estando grávida, ninguém cede um lugar.”
Hoje, Raquel é funcionária fixa do CDI, mas ficou dois anos na “reserva técnica”. Isso porque, quando trabalhava na Poli, diariamente passava por situações desconfortáveis com alunos. Por não tolerar desrespeito, Raquel reclamou com o supervisor e foi tirada do posto. Passou a ser “ferista”, ou seja, ela cobre as férias de colegas de trabalho.
“O que incomoda aqui é a postura de alguns alunos e o circular, porque mesmo eu estando grávida, ninguém cede um lugar.”
– Raquel Lima, funcionária terceirizada da USP há seis anos
Em terras uspianas, além de estar perto de casa, no Jardim São Remo, Raquel tem mais tempo para se dedicar ao filho e à menina que chega em breve. Também consegue pensar em seu novo projeto: ela montou um salão de beleza na sala de casa, onde faz pé e mão das clientes com hora marcada.
Raquel espera que essa seja sua principal fonte de renda, assim que Maria Helena vier ao mundo. É um sonho de independência duplamente alimentado.
Eliana: construtora de casas e sonhos
No final da rua Teixeira Souza, na portaria em frente à Escola de Educação Física e Esporte, começa uma conversa com Eliana Pereira de Oliveira. Ela é interrompida quarenta vezes por dia pelos furgões que precisam ser checados pela vigilante antes de entrarem: “podem conter drogas”.
Após cada checagem, incessantemente retoma a fala. Um eixo para seus assuntos é a Inglaterra, onde morou por dois anos, durante a década de 1990. Foi com 26 anos, diploma de colegial e sem inglês à procura de emprego. Arranjou oito, mas com visto de estudante. Passou a imigrante ilegal e, depois, deportada.
Dividia a residência com sete pessoas, morando a alguns quilômetros da casa de sua irmã, que foi encontrar na Inglaterra – Eliana disse não ter insistido em permanecer ilegalmente para não prejudicá-la. A irmã vivia em condição legal e, hoje, mora em Orlando, nos Estados Unidos. “Não gosto de americanos”, ressalta a vigilante. Ela diz presenciado um afro-americano cuspir em um policial britânico também negro.
Com saudades dos ingleses, divaga sobre naturalização. Não hesita em criticar a grosseria e violência de muitos brasileiros. Lamenta a diferença de respeito lembrando da mulher que se desculpou por estar com o pé onde a brasileira pisou. Na Inglaterra, 27 anos atrás, sua sexualidade era aceita. Eliana é homossexual.
“As pessoas também deveriam sorrir mais e dar bom dia, até mesmo de manhã”, acredita a osasquense de 53 anos. Mas, para ela, eventuais insensibilidades não ocorrem por ser funcionária terceirizada.
Um detalhe revelador sobre as lutas de Eliana: além de vigilante, ela aluga um imóvel – construído por ela mesma, como pedreira – em São Vicente, litoral paulista.
Roberlei: dobrando turnos
Roberlei Santos tem experiência como vigilante: só na USP está há sete anos, tendo passado pela Faculdade de Odontologia (FOUSP) e pelo Centro de Tecnologia da Informação de São Paulo, local do campus só para funcionários, uma central de telefonia e internet.
Antes de atuar como vigilante, Roberlei fez curso de torneiro mecânico e trabalhou na indústria metalúrgica.“Às vezes você tem uma profissão, mas não acha emprego e tem que migrar para outra. Mas, com 44 anos, tem que ficar onde está.”
Roberlei tem uma rotina puxada, mesmo trabalhando na USP um dia sim, outro não. Seus turnos são de “12 por 36 horas”: trabalha meio dia, com intervalo de um dia e meio. Essa alternância o faz ganhar menos. E é por isso que ele mantém outro emprego, na mesma função, na zona sul de São Paulo. Em tom de brincadeira, fala que, se fosse solteiro, até daria para se manter com um trabalho, mas com esposa e dois filhos, é preciso dobrar o esforço.
“Às vezes você tem uma profissão, mas não acha emprego e tem que migrar para outra. Mas, com 44 anos, tem que ficar onde está.”
– Roberlei Santos, funcionário terceirizado da USP há sete anos
Ele passou por diversas empresas na função de vigilante. Atuou em hipermercados, shoppings e até pedágios. Trabalhou armado e em uma ocasião teve que utilizar a arma. Segundo avalia, a USP é dos lugares mais calmos em que trabalhou. “O pessoal aqui é tranquilo, gente boa. Só na Odonto tem um pessoal mais chatinho, mas quando precisa da gente, fica mais legal.”
A determinação de Valquíria
Valquíria da Silva fez de tudo um pouco: com 48 anos a serem completados em outubro, a profissional de limpeza trabalhou em serralheria fazendo estojos e lápis, foi copeira no PCdoB e caseira em Paraibuna, no interior paulista, antes de vir parar no Centro de Práticas Esportivas da USP (CEPEUSP).
Como ela chegou à USP? Há pouco mais de quatro meses, Valquíria comentou com uma amiga que precisava de emprego em São Paulo: a vida em Paraibuna com o marido a isolava do resto da família. Não demorou para que fosse contratada.
A família de Valquíria começou quando ela tinha 17 anos, com o nascimento de sua primogênita, a primeira de cinco filhos. O segundo filho seguiu os passos da mãe e também se tornou um dos terceirizados da Universidade.
Sobre o trabalho, ela não tem do que reclamar: os usuários do CEPE são simpáticos e Valquíria se sente rejuvenescida trabalhando lá. Seria sua fonte da juventude: “Ver esse pessoal fazendo esporte deixa a gente mais nova”.
No entanto, ela não sente que seu emprego seja visto como respeitável: “Esse trabalho é digno, mas não é valorizado”, diz, olhando para baixo. “Se eu tivesse a cabeça de hoje, teria estudado mais”.
E não foi por falta de tentativa: não faz muito tempo, a descoberta de uma diabetes tipo 2 a obrigou a desistir de estudar. O principal problema, desabafa, é a vontade de comer. Ela adora mocotó e feijoada. Só os remédios conseguem ajudá-la, e mesmo assim a ansiedade pode atrapalhar o tratamento.
Contudo, o futuro que Valquíria desejava nunca esteve tão próximo: faltam apenas duas disciplinas para que ela possa se formar no Ensino Médio. Depois de terminar seus estudos em matemática e química, obterá o diploma.
A longo prazo, pretende mudar de trabalho. Com a perspectiva de se tornar segurança, ela espera se aposentar em 15 anos. Valquíria acredita que esse trabalho será mais tranquilo para alguém da sua idade, e quer que essa seja a última das muitas funções que desempenhou ao longo da vida. Determinada, afirma: “Quero fazer isso e vou fazer.”
Por Ana Carolina Cipriano, Caio Mattos e Sabrina Brito
Jornal do Campus – USP
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