Ao g1, estudantes falam sobre como se sentiram ‘extraterrestres’ em um espaço que, até então, era formado quase que exclusivamente por professores e alunos brancos. Ao longo dos 5 anos de curso, cotistas transformaram a universidade com novos debates e luta por políticas de permanência mais efetivas.
“Olhava ao meu redor e pensava: ‘será que deveria mesmo estar aqui?’.”
“Eu me sentia uma extraterrestre.”
“Contei nos dedos quantos negros vi ali. Fiquei assustada.”
As frases acima foram ditas por alunos cotistas que ingressaram na Faculdade de Direito da Universidade de São Paulo (USP) em 2018, na 1ª turma — em quase 200 anos de história da instituição — a ter vagas reservadas para pretos, pardos e indígenas.
Após concluírem o curso em dezembro de 2022, os estudantes reuniram-se no fim de janeiro para tirar as fotos da formatura (veja abaixo). Filhos de faxineiras, garis, pedreiros, donas de casa e professores, esses 35 jovens venceram a sensação inicial de não pertencimento à faculdade e promoveram uma série de transformações na instituição ao longo dos últimos 5 anos, como:
implementação de políticas de permanência mais efetivas, com reajuste de bolsas para jovens de baixa renda e reformas na residência estudantil;
inclusão de novos debates em sala de aula e de autores negros nas bibliografias das disciplinas.
“A gente não podia se dar ao luxo de só estudar. A primeira turma de cotistas negros tinha de ser ativa politicamente”, conta Letícia Lé, de 24 anos.
Ela relembra que havia certo espanto com a sua presença ali. “Eu andava pela faculdade e ouvia: ‘mas você estuda aqui?’. Havia um estranhamento em ver alunos como nós. Acho que agora, 5 gerações depois, os novos cotistas que entram ficam mais confortáveis de sentir que é um espaço deles também.”
Em dezembro de 2022, na turma de Letícia, formaram-se 312 estudantes, sendo:
237 via Fuvest (vestibular);
75 via Sistema de Seleção Unificada (Sisu, que usa as notas do Exame Nacional do Ensino Médio). Destes, 35 são cotistas pretos, pardos e indígenas.
No cargo que já foi de Haddad, uma filha de caminhoneiro e empregada doméstica
Um dos grandes marcos dessa luta política dos alunos mais pobres aconteceu em 2019, quando, pela primeira vez em 116 anos, uma mulher negra ganhou as eleições internas para ser presidente do mais antigo centro acadêmico do Brasil: o XI de Agosto.
O cargo, que já havia sido ocupado pelo ex-senador Aloysio Nunes Filho (PSDB) e pelo ministro Fernando Haddad (PT), por exemplo, passou a ser da cotista Letícia Chagas, de 22 anos, filha de um caminhoneiro e de uma empregada doméstica aposentados.
“Meus colegas tinham pais e avós que fizeram a São Francisco [como é conhecida a faculdade] — e o direito tem muito de tradição e networking”, diz.
Chagas conta que, no começo, sentia dificuldade nas disciplinas que exigiam domínio de outros idiomas. “Faz muita diferença não ter o mesmo capital cultural que os outros alunos, porque a maioria dos escritórios exige que a gente saiba mais de uma língua [nos processos seletivos para estágio].”
Esse tipo de obstáculo pressionava o grupo.
“Nós sentíamos uma responsabilidade muito grande. Se errássemos e fôssemos mal, isso ia virar argumento contra cotas. Precisávamos ter notas boas. Era um peso.”
Com o passar dos anos e a ampliação das políticas de cotas, universidades brasileiras, inclusive a USP, passaram a oferecer programas gratuitos de aulas de inglês. Ao g1, a Faculdade de Direito afirma que atualmente tem uma parceria com escritórios para facilitar a contratação de cotistas.
A chapa de Letícia Chagas no centro acadêmico e o movimento político Travessia levantaram debates para vencer as principais dificuldades dos alunos das cotas étnico-raciais. Veja abaixo:
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